sexta-feira, 5 de abril de 2013

Carlos Drummond de Andrade (Como encarar a morte)

De longe

Quatro bem-te-vis levam nos bicos

o batel de ouro e lápis-lazúli,
e pousando-o sobre uma acácia
cantam o canto costumeiro.

O barco lá fica banhado

de brisa aveludada, açúcar,
e os bem-te-vis, já esquecidos
de perpassar, dormem no espaço.


A meia distância


Claridade infusa na sombra,

treva implícita na claridade?
Quem ousa dizer o que viu,
se não viu a não ser em sonho?

Mas insones tornamos a vê-lo

e um vago arrepio vara
a mais íntima pele do homem.
A superfície jaz tranqüila.


De lado


Sente-se já, não a figura,

passos na areia, pés incertos,
avançado e deixando ver
um certo código de sandálias.

Salvo rosto ou contorno explícito,

como saber que nos procura
o viajante sem identidade?
Algum ponto em nós se recusa.


De dentro


Agora não se esconde mais.

Apresenta-se, corpo inteiro,
se merece nome de corpo
o gás de um estado indefinível.

Seu interior mostra-se aberto.

Promete riquezas, prémios,
mas eis que falta curiosidade,
e todo ferrão de desejo.


Sem vista


Singular, sentir não sentindo

ou sentimento inexpresso
de si mesmo, em vaso coberto
de resina e lótus e sons.

Nem viajar nem estar quedo

em lugar algum do mundo, só
o não saber que afinal se sabe
e, mais sabido, mais se ignora.


"Como Encarar a Morte"
In Corpo - Record, 1984