quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

tempo limpo


No silêncio dirás silício, areia, cílio.
Dirás borboleta, lenta
mente dirás rio, abraço,
mãe.

À velocidade de uns quantos nós
viajarás na imensa luz
dos pirilampos.

Na poeira dos meteoros
contornarás todos os anéis
dos planetas com anéis,
para regressar, depois,
ao astro azul,
à idade branca,
ao tempo
limpo.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

é veloz a tua voz quando te calas no silêncio

(António Dacosta)

É veloz a tua voz quando
te calas no silêncio
ruidoso dos gestos, como se
todas as ilhas de súbito
se afundassem
nos mares do mundo.

Na sala de espera das viagens
procuras o bilhete de ida e
volta que atiraste para o
fundo da mala, da alma
e não encontras,
procuras e não encontras.

Afundas as mãos mala dentro,
alma dentro e,
entre os objectos, apenas
o pequeno espelho
por onde olhas todas as manhãs
para limpar o rosto de sinais
te vem ás mãos.

Resignas-te à falta, enquanto
gritas surdamente e
caminhas rapidíssima pelos dias
com a folha da memória
gravada no lugar
do coração.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Nuno Júdice (Ramo)



Vejo a erosão das palavras na terra

da frase. Transformam-se em lama:
misturam-se com as folhas. Um húmus
de sílabas alimenta o verso.

Com a primavera, o poema nascerá;

e as suas flores cobrirão o campo
com um brilho transparente, deixando
ver o interior de cada imagem.

Corto-as do caule para fazer um ramo

que ponho no vaso da estrofe,
para que não sequem, nem murchem.

São as flores que ficam, as que

duram para o inverno, as que
resistem ao vento, à angústia, à morte.


O Breve Sentimento do Eterno, 2008



segunda-feira, 13 de maio de 2013

domingo, 5 de maio de 2013

Almada Negreiros (Confidências)


Mãe!

Em cima das estátuas está o verbo ganhar, Mãe! será para mim?
Quando passo pelas estátuas fico parado. A olhar para cima das estátuas. Fico parado a subir. Não sei quem me agarra para me levantar ao ar. Agarram-me por debaixo dos braços para me levantar ao ar. Para eu ver o verbo ganhar em cima das estátuas. 
(...)

Mãe!

Vem ouvir a minha cabeça a contar historias ricas que ainda não viajei. Traz tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta cor de sangue, sangue! verdadeiro, encarnado!
(...)

Mãe! Ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado!

(...)

Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!

Quando tu passas a tua mão pela minha cabeça é tudo tão verdade!

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Carlos Drummond de Andrade (Como encarar a morte)

De longe

Quatro bem-te-vis levam nos bicos

o batel de ouro e lápis-lazúli,
e pousando-o sobre uma acácia
cantam o canto costumeiro.

O barco lá fica banhado

de brisa aveludada, açúcar,
e os bem-te-vis, já esquecidos
de perpassar, dormem no espaço.


A meia distância


Claridade infusa na sombra,

treva implícita na claridade?
Quem ousa dizer o que viu,
se não viu a não ser em sonho?

Mas insones tornamos a vê-lo

e um vago arrepio vara
a mais íntima pele do homem.
A superfície jaz tranqüila.


De lado


Sente-se já, não a figura,

passos na areia, pés incertos,
avançado e deixando ver
um certo código de sandálias.

Salvo rosto ou contorno explícito,

como saber que nos procura
o viajante sem identidade?
Algum ponto em nós se recusa.


De dentro


Agora não se esconde mais.

Apresenta-se, corpo inteiro,
se merece nome de corpo
o gás de um estado indefinível.

Seu interior mostra-se aberto.

Promete riquezas, prémios,
mas eis que falta curiosidade,
e todo ferrão de desejo.


Sem vista


Singular, sentir não sentindo

ou sentimento inexpresso
de si mesmo, em vaso coberto
de resina e lótus e sons.

Nem viajar nem estar quedo

em lugar algum do mundo, só
o não saber que afinal se sabe
e, mais sabido, mais se ignora.


"Como Encarar a Morte"
In Corpo - Record, 1984