Os
Dias Sem Ti
«Porra, faz tudo trinta anos...!»
Gabriel Garcia Marques, O Amor nos Tempos da Cólera
A manhã abria-se devagar, quase a medo,
entre os ruídos da cidade e um vento leve que, por vezes, surpreendia com
breves mas intensos sopros. Inocêncio Mata ia pela rua a caminho da camioneta
da carreira que haveria de apanhar um pouco mais tarde e o levaria ao emprego
de todos os dias. Como em todos os dias antes e desde há cerca de trinta anos.
Com ele caminhava o seu nome. Dentro do seu corpo, à superfície do seu corpo, à
sua volta, o seu nome ia com ele. Por onde fosse. Da história que ele guardava
Inocêncio sabia apenas que tinha sido a mãe quem o escolhera e o espalhara à
sua volta, num alento que o pai acolheu, alguns minutos antes de morrer ao
comprido da mesa onde se deitara com a ajuda de Altina Mata, a irmã do marido,
para parir aquele filho. O pai, Prudêncio Mata, acolhera as palavras da mulher
como uma rajada de vento rude na cara e, sem uma palavra, calara-se. Ele sabia
o significado, o sentido e o porquê daquele nome. Contara-o mais tarde a
Inocêncio e também ele tinha ficado em silêncio perante a revelação.
Agora Inocêncio aproxima-se do local
onde já três outros nomes aguardam a mesma camioneta que os levará pelas ruas e
os depositará, um após outro, em sítios diferentes da cidade e onde irão
permanecer durante todo o santíssimo dia, para bem da sua vida e da família de
cada um, pois disso ela depende.
Momentos antes, quando saiu de casa, a
mulher Perpétua Paz, entre dois beijos, dissera-lhe Tem calma Inocêncio tem
calma deixa que as coisas se compõem. Que sim sussurrara-lhe ele junto ao
ouvido, pelo segundo beijo. E ficara parado a olhar dentro dos olhos dela, lá
no fundo, e a olhar os cabelos que lhe esvoaçavam sobre a cara por ordem
daquele vento nítido. E sentira-se feliz. De uma maneira triste, pensou mais
tarde. Mas feliz. Talvez porque sentiu que no fundo daqueles olhos morava ele e
que no fundo dos olhos dele ela ocupava o lugar do amor. Talvez fosse isso. Ou
então era o vento, era a manhã ainda quente de Outubro, eram os cabelos
espalhados pelo rosto, eram os pequenos beijos, a música que ouvia ainda e
vinha de dentro da casa de onde saíra para a rua e
Subiu para a camioneta depois de uma
longa chiadeira de freios a precisar de ofício, logo a seguir ao último dos
três nomes que o haviam precedido na espera. Procurou um lugar e sentou-se
junto à janela, do lado de Perpétua Paz que ficara ali fora aguardando que a
camioneta desaparecesse na curva da rua, mais à frente, levando o marido para o
dia inteiro da cidade. Depois, encostou a cabeça ao vidro e fechou os olhos. O
seu pai e a sua mãe vieram-lhe ao pensamento e lembrou-os lá longe, vivendo os
dias, nos montes da serra, na terra das árvores e do céu. Sentiu saudades, um
peso dentro do peito, uma lágrima, tudo junto e ao mesmo tempo. Abriu os olhos
de repente para se revoltar face àquela súbita tristeza. E deu de caras com um
rosto pequeno, à sua frente, olhando para trás, para ele. Sorriu-lhe. A menina
devolveu-lhe o sorriso, abrindo uma claridade grande à sua volta. Olá,
disse-lhe ele. E reparou nos olhos escuros junto à franja de cabelos castanhos
compridos e brilhantes que quase lhe tapavam a cara. Como te chamas? Perguntou.
Joana respondeu a menina. Joana ouviu ele. Mas já não ouviu a mãe da menina
dizer-lhe senta-te rapariga e deixa o senhor. Joana pensou ele. E fechou de
novo os olhos junto ao vidro da janela, ao mesmo tempo que a menina se sentava.
Joana...
Era um nome que tinha sonhado por muito
tempo mas não tinha podido guardar.
…