terça-feira, 12 de setembro de 2017

Os Dias Sem Ti

«Porra, faz tudo trinta anos...!»
Gabriel Garcia Marques, O Amor nos Tempos da Cólera

A manhã abria-se devagar, quase a medo, entre os ruídos da cidade e um vento leve que, por vezes, surpreendia com breves mas intensos sopros. Inocêncio Mata ia pela rua a caminho da camioneta da carreira que haveria de apanhar um pouco mais tarde e o levaria ao emprego de todos os dias. Como em todos os dias antes e desde há cerca de trinta anos. Com ele caminhava o seu nome. Dentro do seu corpo, à superfície do seu corpo, à sua volta, o seu nome ia com ele. Por onde fosse. Da história que ele guardava Inocêncio sabia apenas que tinha sido a mãe quem o escolhera e o espalhara à sua volta, num alento que o pai acolheu, alguns minutos antes de morrer ao comprido da mesa onde se deitara com a ajuda de Altina Mata, a irmã do marido, para parir aquele filho. O pai, Prudêncio Mata, acolhera as palavras da mulher como uma rajada de vento rude na cara e, sem uma palavra, calara-se. Ele sabia o significado, o sentido e o porquê daquele nome. Contara-o mais tarde a Inocêncio e também ele tinha ficado em silêncio perante a revelação.
Agora Inocêncio aproxima-se do local onde já três outros nomes aguardam a mesma camioneta que os levará pelas ruas e os depositará, um após outro, em sítios diferentes da cidade e onde irão permanecer durante todo o santíssimo dia, para bem da sua vida e da família de cada um, pois disso ela depende.
Momentos antes, quando saiu de casa, a mulher Perpétua Paz, entre dois beijos, dissera-lhe Tem calma Inocêncio tem calma deixa que as coisas se compõem. Que sim sussurrara-lhe ele junto ao ouvido, pelo segundo beijo. E ficara parado a olhar dentro dos olhos dela, lá no fundo, e a olhar os cabelos que lhe esvoaçavam sobre a cara por ordem daquele vento nítido. E sentira-se feliz. De uma maneira triste, pensou mais tarde. Mas feliz. Talvez porque sentiu que no fundo daqueles olhos morava ele e que no fundo dos olhos dele ela ocupava o lugar do amor. Talvez fosse isso. Ou então era o vento, era a manhã ainda quente de Outubro, eram os cabelos espalhados pelo rosto, eram os pequenos beijos, a música que ouvia ainda e vinha de dentro da casa de onde saíra para a rua e
Subiu para a camioneta depois de uma longa chiadeira de freios a precisar de ofício, logo a seguir ao último dos três nomes que o haviam precedido na espera. Procurou um lugar e sentou-se junto à janela, do lado de Perpétua Paz que ficara ali fora aguardando que a camioneta desaparecesse na curva da rua, mais à frente, levando o marido para o dia inteiro da cidade. Depois, encostou a cabeça ao vidro e fechou os olhos. O seu pai e a sua mãe vieram-lhe ao pensamento e lembrou-os lá longe, vivendo os dias, nos montes da serra, na terra das árvores e do céu. Sentiu saudades, um peso dentro do peito, uma lágrima, tudo junto e ao mesmo tempo. Abriu os olhos de repente para se revoltar face àquela súbita tristeza. E deu de caras com um rosto pequeno, à sua frente, olhando para trás, para ele. Sorriu-lhe. A menina devolveu-lhe o sorriso, abrindo uma claridade grande à sua volta. Olá, disse-lhe ele. E reparou nos olhos escuros junto à franja de cabelos castanhos compridos e brilhantes que quase lhe tapavam a cara. Como te chamas? Perguntou. Joana respondeu a menina. Joana ouviu ele. Mas já não ouviu a mãe da menina dizer-lhe senta-te rapariga e deixa o senhor. Joana pensou ele. E fechou de novo os olhos junto ao vidro da janela, ao mesmo tempo que a menina se sentava. Joana...
Era um nome que tinha sonhado por muito tempo mas não tinha podido guardar.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

o murmúrio da água



O murmúrio da água nos veios do monte
Uma luz pequena dentro dos olhos
A sombra de uma ave branca
Os lugares onde procuro ouro
e descubro as palavras com que
hei-de aparafusar a minha mão
ao teu silêncio.



terça-feira, 28 de outubro de 2014

O tempo todo




o cordel do tempo atado em nós
e em cada nó um sobressalto
um sopro um murmúrio um grito e
depois o silêncio o silêncio ruidoso dos gestos
temperados a gosto em agosto Senhor e
tem chovido apesar do equinócio tem chovido e há
enxurradas cirúrgicas que desabam
um pouco por todo o lado
dos olhos globais da terra
para o céu interior
dos nomes


quarta-feira, 21 de maio de 2014

Maria Teresa Horta (Poema sobre a recusa)


Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos
meus dedos
se ter formado o afago
Sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva
Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda

( Maria Teresa Horta -  "Minha Senhora de Mim")

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

tempo limpo


No silêncio dirás silício, areia, cílio.
Dirás borboleta, lenta
mente dirás rio, abraço,
mãe.

À velocidade de uns quantos nós
viajarás na imensa luz
dos pirilampos.

Na poeira dos meteoros
contornarás todos os anéis
dos planetas com anéis,
para regressar, depois,
ao astro azul,
à idade branca,
ao tempo
limpo.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

é veloz a tua voz quando te calas no silêncio

(António Dacosta)

É veloz a tua voz quando
te calas no silêncio
ruidoso dos gestos, como se
todas as ilhas de súbito
se afundassem
nos mares do mundo.

Na sala de espera das viagens
procuras o bilhete de ida e
volta que atiraste para o
fundo da mala, da alma
e não encontras,
procuras e não encontras.

Afundas as mãos mala dentro,
alma dentro e,
entre os objectos, apenas
o pequeno espelho
por onde olhas todas as manhãs
para limpar o rosto de sinais
te vem ás mãos.

Resignas-te à falta, enquanto
gritas surdamente e
caminhas rapidíssima pelos dias
com a folha da memória
gravada no lugar
do coração.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Nuno Júdice (Ramo)



Vejo a erosão das palavras na terra

da frase. Transformam-se em lama:
misturam-se com as folhas. Um húmus
de sílabas alimenta o verso.

Com a primavera, o poema nascerá;

e as suas flores cobrirão o campo
com um brilho transparente, deixando
ver o interior de cada imagem.

Corto-as do caule para fazer um ramo

que ponho no vaso da estrofe,
para que não sequem, nem murchem.

São as flores que ficam, as que

duram para o inverno, as que
resistem ao vento, à angústia, à morte.


O Breve Sentimento do Eterno, 2008